Lendas brasileiras - história da IARA
Texto Domínio Público de Monteiro Lobato para o Projeto Folclore
— Vamos à
cachoeira onde mora a Iara — disse. — Essa rainha das águas costuma aparecer
sobre as pedras nas noites de lua. É muito possível que possamos surpreendê-la
a pentear os seus lindos cabelos verdes com o pente de ouro que usa.
— Dizem que é
criatura muito perigosa — murmurou Pedrinho.
— Perigosíssima
— declarou o saci. — Todo cuidado é pouco. A beleza da Iara dói tanto na vista
dos homens que os cega e os puxa para o fundo d’água. A Iara tem a mesma beleza
venenosa das sereias. Você vai fazer tudo direitinho como eu mandar. Do
contrário, era uma vez o neto de Dona Benta!...
Pedrinho
prometeu obedecer cegamente. Andaram, andaram, andaram. Por fim chegaram a uma
grande cachoeira cujo ruído já vinham ouvindo de longe.
— É ali — disse
o perneta, apontando. — É ali que ela costuma vir pentear-se ao luar. Mas você
não pode vê-la. Tem de ficar bem quietinho, escondido aqui atrás desta pedra e
sem licença de pôr os olhos na Iara. Se não fizer assim, há de arrepender-se
amargamente. O menos que poderá acontecer é ficar cego.
Pedrinho
prometeu, e de medo de não cumprir o prometido foi logo tapando os olhos com as
mãos.
O saci partiu,
saltando de pedra em pedra, para logo desaparecer por entre as moitas de
samambaias e begônias silvestres.
Vendo-se só,
Pedrinho arrependeu-se de haver prometido conservar-se de olhos fechados. Já
tinha visto o Lobisomem, o Caipora, o Curupira, a Cuca. Por que não havia de
ver a Iara também? O que diziam do poder fatal dos seus encantos certamente que
era exagero. Além disso, poderia usar um recurso: espiar com um olho só. O
gosto de contar a toda gente que tinha visto a famosa Iara valia bem um olho.
Assim pensando,
e não podendo por mais tempo resistir à tentação, fez como o saci: foi pulando
de pedra em pedra, seguindo o mesmo caminho por ele seguido.
Súbito, estacou,
como fulminado pelo raio. Ao galgar uma pedra mais alta do que as outras, viu,
a cinqüenta metros de distância, uma ninfa de deslumbrante beleza, em repouso
numa pedra verde de limo, a pentear com um pente de ouro os longos cabelos
verdes cor do mar. Mirava-se no espelho das águas, que naquele ponto formavam
uma bacia de superfície parada. Em torno dela centenas de vaga-lumes descreviam
círculos no ar; eram a coroa viva da rainha das águas. Jóia bela assim, pensou
Pedrinho, nenhuma rainha da terra jamais possuiu. A tonteira que a vista da
Iara causa nos mortais tomou conta dele. Esqueceu até do seu plano de olhar com
um olho só. Olhava com os dois, arregaladíssimos, e cem olhos que tivesse, com
todos os cem olharia.
Enquanto isso,
ia o saci se aproximando da Mãe-d’Água, cautelosamente, com infinitos de
astúcia para que ela nada percebesse. Quando chegou a poucos metros de
distância, deu um pulo de gato e nhoque! Furtou-lhe um fio de cabelo.
O susto da Iara
foi grande. Desferiu um grito e precipitou-se nas águas, desaparecendo.
O saci não
esperou por mais. Com espantosa agilidade de macaco, aos pinotes, saltando as
pedras de duas em duas, de três em três, num momento se achou no ponto onde
Pedrinho, ainda no deslumbramento da beleza, jazia de olhos arregalados,
imóvel, feito uma estátua.
— Louco! —
exclamou o saci, lançando-se a ele e esfregando-lhe nos olhos um punhado de
folhas colhidas no momento.
— Não fosse o
acaso ter posto aqui ao meu alcance esta planta maravilhosa e você estaria
perdido para sempre. Louco, dez vezes louco, louquíssimo que você é, Pedrinho!
Por que me desobedeceu?
— Não pude resistir
— respondeu o menino logo que a fala lhe voltou. — Era tão linda, tão linda,
tão linda, que me considerei feliz de perder até os dois olhos em troca do
encantamento de contemplá-la por uns segundos.
— Pois saiba que
cometeu uma grande falta. Não devia pensar unicamente em si, mas também na
pobre Dona Benta, que é tão boa, e na sua mãe e em Narizinho. Eu, apesar de um
simples saci, tenho melhor cabeça do que você, pelo que estou vendo...
Aquelas palavras
calaram no menino, que nada teve a dizer, achando que realmente o saci tinha
toda razão.
— Bem —
continuou o duendezinho — agora que o perigo já passou, tratemos de voltar à
caverna da Cuca. E depressa, antes que amanheça. Lembre-se que prometemos a
Dona Benta estar no sítio com a menina sumida logo ao romper da manhã.
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